Pular para o conteúdo principal

estou farto de semideuses

Poema em linha reta
Fernando Pessoa(Álvaro de Campos)
[538]
Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Comentários

Rita Santana disse…
Eu amo este poema, Graça! É lindo! Pensei em publicaá-lo por esses dias; vê-se que a sintonia é grande! Um beijo grato pela lembrança e sensibilidade. Detesto os semideuses.

Postagens mais visitadas deste blog

Ruínas de fé

"Arqueja triste nos braços frios da noite. Ainda quando os anjos e demônios a espiam por frestas ocultíssimas, ouço o farfalhar demente das tuas asas. Ergue-se o vôo sem razão." Rocque Moraes Artista visual e poeta bissexto, Rocque ama rock. Eu amo rock e Rocque, embora ele não mereça.

Apresentação

Olá, este será mais um espaço que utilizarei para exposição de idéias, gostos e desgostos. Será, principalmente, o lugar da poesia, da música, das expressões artísticas que caminham à margem dos meios de massa, do bom gosto, do que não tem rótulo, do que não tem nome. Inauguro esta apresentação com uma poema publicado na revista Reflexos de Universos nº 60 o silêncio das almas repousa sobre a cidade cala-se o metal dos sinos cala-se o riso dos meninos só um suspiro finado move as teclas do piano frente à mesa servida de dor graça sena Para ler ao som da banda Sex Gang Children http://www.myspace.com/sexgangchildren666

Acho que vou fazer um filme

[para ouvir ao som de Múm] Escrevo sob o signo da melancolia, uma saudade inexplicável de não sei o quê (desculpem o acento, força do hábito), uma sensação estranha de vazio, de... que foi que eu fiz? O que fazer? Cadê tudo? Chega! Esta será uma postagem longa, apenas os pacientes e os que amam verdadeiramente a poesia lerão até o fim e, possivelmente, comentarão. Abri a pasta rosa, peguei um dos seus escritos e li. Era uma carta falando do meu texto intitulado As Cartas. Já postei um fragmento aqui. Essa carta recupera pedaços da peça que escrevi, a qual trata do encontro de duas mulheres quase estranhas e muito diferentes. Já tentamos montar essa peça várias vezes mas nunca deu certo. Acho que vou fazer um filme. “... li a peça e várias vezes reli. A solidão de Zoé não seria a profunda consciência da solidão de nós mesmas, que escrevemos e que tornamos a poesia nossa amante, pois sentimos sem compreender a efemeridade de tudo o que nos cerca?” (...) “Conheço-a através dos seus escrit...